quinta-feira, 19 de julho de 2012

Prólogo


    Era uma noite fria. Muito mais fria do que  normalmente seria, até mesmo para um inverno. A neve caia dos céus em grandes flocos, cobrindo a terra com um fofo tapete branco e enfeitando em pesadas quantidades as árvores desfolhadas, enquanto pequenos espinhos de gelo dependuravam-se em galhos destorcidos. Não havia viva alma andando por aqueles lados, a não ser a silhueta solitária que se arrastava com dificuldade em meio a noite gelada. As vestes, todas pretas, estavam úmidas e pesadas, a capa que as cobria, encharcada na barra. Tudo quase que cuidadosamente ajeitado para dificultar a dura caminhada do homem.   
   Curvado e abraçando-se para proteger-se do frio, ele prosseguiu passo a passo, com os pés completamente afundados na neve. A respiração ofegante se condensava em belas nuvens de vapor, exaladas pela abertura do capuz que lhe cobria a cabeça. O céu não desfrutava da presença de lua ou estrelas, apenas de nuvens carrancudas que o cobriam e nublavam por inteiro. Não fosse a pequena esfera de luz que ia afrente do homem, iluminando seu caminho e impedindo que ele tropeçasse nas raízes que se projetavam para fora da camada de neve, o breu seria completo.    
   Ao passar por um pinheiro completamente branco o homem avistou, ao longe, uma gruta de pedras com uma entrada grande o suficiente para uma pessoa de estatura mediana passar com folga, mas não o bastante para que alguém alto passasse sem bater a cabeça caso não tomasse cuidado, o que era exatamente o caso. A visão dessa gruta o encheu de energias e fez com que apertasse o passo, e, embora tropeçasse uma ou duas vezes em sua vontade de chegar mais rápido, conseguiu chegar ileso à entrada da pequena caverna.   
   A  esfera de luz que o acompanhava entrou a frente, revelando o início do caminho por dentro da gruta completamente mergulhada na escuridão e salpicada de neve invasora. O homem andou alguns metros, enquanto seus passos ecoavam por dentro da gruta e gordas gotas de água pingavam do teto de pedra bruta direto em sua cabeça ou em suas já encharcadas roupas. Cerca de dez metros a frente o caminho fazia uma curva para a direita e uma escada esculpida em pedra despontava para baixo. Ao passo que o ar umidecia, a sensação de frio aumentava, junto com o eco de seus passos que preenchia a caverna de sons, coisa que, aparentemente, há muito não acontecia. O homem desceu as escadas.   
   Ao final da longa e rude escada o cenário apertado mudava completamente. O teto, de tão alto, exigia ao menos dois gigantes homens comuns, um sobre o ombro do outro, para que fosse possível alcançá-lo. Via-se um lago no centro do grande pátio que aparecera no lugar dos estreitos corredores, e sua água cristalina e parada refletia as chamas de tochas de madeira, elegantemente fixadas nas paredes cruas. Procurou rapidamente a pessoa que deveria estar ali, mas ouvia apenas silêncio, e via apenas ninguém. Inseguro, deu dois passos à frente e assustou-se com o eco do barulho estridente que fez ao quebrar um graveto que jazia no chão.    
   - Achei que jamais viria. - disse uma voz jovem, ecoando de todos os lugares.   
   De sobressalto, o homem virou e encontrou o rapaz, motivo de sua viagem. Baixou o próprio capuz e revelou um rosto fino e alongado, cabelos judiados e compridos, que não costumavam ser brancos, mas certas atividades  haviam assim os deixado. Estavam presos de maneira frouxa, não talvez por desleixo, mas quem sabe para encobrir uma cicatriz que passava sobre seu olho esquerdo, o inutilizando completamente.
   - Imaginei que o senhor fosse... - disse sorrindo ao rapaz - maior.   
   - Creio que sim. - sorriu de volta o jovem, com falsa educação.   
   O rapaz era baixo e tinha as feições idênticas a alguém que o homem conhecera no passado. Talvez a pessoa que ele mais repudiasse em todos os planos conhecidos. Com cerca de um metro e sessenta, possuía um rosto jovem como o de um adolescente de treze anos, e os cabelos, por natureza, completamente brancos e elegantemente compridos até sua cintura, trançados. Em seu rosto o sorriso perturbador, apesar de estampado em feições juvenis, tinha algo de ameaçador e perigoso, como o guizo de uma cobra cascavel. Os olhos, tão perturbadores quanto o sorriso, eram atentos e bastante incomuns, em seu tom de violeta brilhante, quase fluorecentes.   
   - Como devo chamá-lo, rapaz?   
   - Elliot.   
   - Bonito nome. - o homem estendeu a mão num gesto educado, mas tudo que obteve de resposta foi um olhar curioso. Abaixou a mão sem se desapontar- Mora sozinho aqui embaixo?   
   - Moro. – respondeu o menino sorrindo, ainda curioso, como se nunca tivesse visto algo humano em sua vida.   
   - Entendo. – o homem virou-se e contemplou a imensidão da caverna. Julgando pelo lugar inóspito em que ela se encontrava, ele compreendeu o motivo pelo qual nunca o haviam o encontrado desde aquele dia.
   – Creio que esteja ansioso para realizarmos nosso negócio, não? – perguntou o homem voltando-se novamente para o rapaz que se encontrava ainda no mesmo lugar, imóvel. Parecia se divertir, como se estivesse a admirar uma situação nova e impressionante.   
   - Ah, sim... – disse ele alargando o sorriso, e instantaneamente fazendo um calafrio percorrer a espinha do homem. Era exatamente este o efeito que o outro, aquele com quem Elliot tanto se parecia, causava nele quando sorria daquele jeito. 
   – Vamos!  
   - Primeiro você. –  disse o homem enfiando a mão por debaixo da capa e agarrando no lugar o objeto de barganha, para protegê-lo de uma possível armadilha.   
   - Ah... certo. – atrapalhou-se o rapaz, como quem não fazia ideia de como se negociar algo; e talvez realmente não fizesse.   
   Juntou as duas mãos em concha, levou-as à boca e soprou. Uma luz lilás passou por entre seus dedos e iluminou a caverna, refletindo-se nos olhos do outro homem, que contemplava aquilo espantado. Em segundos o rapaz afastou as mãos da boca, mas permaneceu soprando enquanto a esfera de energia aumentava, de modo a alcançar o tamanho de uma bola de basquete. Pequenos raios roxos percorriam a esfera e um vento sobrenatural passara a soprar  inexplicavelmente dentro da caverna.   
   - Basta! – disse o homem e o rapaz parou de soprar.   
   Ele contemplou a esfera de energia por mais alguns instantes e, então, retirou do bolso com a outra mão uma pedra de cristal transparente e lançou-a de encontro a esfera. Quando a rocha atingiu a concentração de energia, houve um clarão. E quando este passou, o cristal flutuava a um metro e meio do chão, emitindo uma linda luz roxa. O homem ergueu a mão e o cristal voltou para ele.   
   - O que me impediria de matá-lo agora e ficar com as duas coisas? – disse o homem tirando de dentro da sua capa um livro de aparência antiga e encadernamento de couro preto, sem título. Guardou o cristal de volta no bolso.   
   O sorriso do rapaz se alargou novamente e ele deu um passo na direção do homem com a mão estendida para o livro.   
   - A mesma pergunta faço eu. – disse o rapaz, dando outro passo. – O que me impediria de matá-lo e ficar com o livro e minha energia?   
   Nada. Silas Druccius sabia disso antes mesmo de tentar intimidar o garoto e, ao que tudo indicava, ele também conhecia seu poder.   
   - Me intriga o que você pode querer com isso. – disse Silas, optando por entregar o livro ao rapaz. – Ninguém é capaz de fazer essas coisas.   
   - Viva o bastante e verá. – disse o garoto tomando o livro nas mãos.   
   - Serei grato quando alcançar meu objetivo. – disse Silas caminhando na direção da saída. – Serei um bom rei e me lembrarei daqueles que me ajudaram. – concluiu sem voltar-se para o garoto.   
   - Digo o mesmo, Silas Druccius. – disse o rapaz, fazendo com que o homem parasse, mas ainda sem se virar. – Se é que você viverá tempo o suficiente para isso, tolo.   
   Silas voltou-se para onde o rapaz estava anteriormente, mas a caverna encontrava-se vazia e as tochas foram se apagando uma a uma, deixando, novamente, a única fonte de luz como a pequena bolinha que ainda flutuava próxima ao seu corpo.   
   Talvez aquilo fosse um erro, mas o futuro era um mistério e, apesar de tudo, Silas Druccius ainda duvidava que o garoto fosse capaz de fazer o Malleus Maleficarum funcionar, mesmo sendo quem era. Sabia, no entanto, que se conseguisse, seu reinado podia não durar por muito tempo... Estremeceu, voltou a puxar o capuz e subiu em direção à saída sem pensar no que já havia sido feito.